Apreciação comentada do livro "Formação Docente e Profissinal: Formar-se para a mudança e a incerteza" de Francisco Imbernón
Por Cristovam da Silva Alves
Os novos tempos, marcados sobremaneira pela necessária renovação da instituição educativa, exigem redefinição consenciosa da profissão docente, o que implica novas demandas a seus membros. Neste percurso, há que se considerar os antigos problemas postos ao processo de profissionalização de seus integrantes, dentre eles, a posição histórica da docência como profissão de mulheres, a genericidade que paira sobre a mesma descaracterizando-a como ofício, a resistência que a sociedade oferece à reivindicação do controle profissional das escolas. Tais problemas situam a docência como profissão de meio termo, como uma semiprofissão.
A docência nos dias contemporâneos não é mais uma profissão com função de transmissão de conhecimentos como fora antes. A docência hoje se da na relação, na interação, na convivência, na cultura do contexto, na heterogenidade social dos sujeitos envolvidos no processo (discente, docentes, comunidade, especialistas). Do professor, hoje se exige posturas, comportamentos e destrezas diferenciadas: uma nova competência contemporânea para animar, mediar, informar, formar e transformar.
Nessa perspectiva, os professores devem acessar uma formação que lhes proporcione o exercício da reflexão coletiva, uma reflexão que possibilite aos mesmos uma efetiva participação na análise, na compreensão e na proposição do conteúdo e do processo de seu trabalho. Uma reflexão crítica e fundada que os dote da capacidade de enfrentamento da convivência em tempos de mudança e de incertezas.
A profissionalização dos professores, necessária como processo qualificador para atuação efetiva e de qualidade em contexto sócio-culturais e econômicos heterogêneos e em constante mudança, tem no exercício da inovação um de seus elementos propulsores. Inovar no sentido de refletir sobre a ação, analisando-a para propor-lhe alterações. Um inovar centrado na ação coletiva capaz de comprometer a todos com o seu processo de projetar, desenvolver e avaliar, corrigindo desvios e disseminando os acertos. Uma inovação cujo processo resulte na produção de conhecimento, de saberes pedagógicos. Produção de saberes que desviem esses profissionais da posição histórico social de executores, transmissores, para o papel de sujeitos autores do saber, do conhecimento, da posição de coadjuvante para a de protagonista.
O profissionalismo é aqui entendido como característica e capacidade específica da profissão. A profissionalização como processo socializador da aquisição dessa característica e, o profissional como sujeito que domina um conjunto de capacidades e habilidades especializadas que o faz competente em certo trabalho.
A docência, segundo Imbernón, só poderá ser vista como uma profissão se seu exercício e os conhecimentos dela derivados estiverem a serviço da mudança e da dignificação da pessoa, em razão da especificidade da sua natureza.
O conhecimento do profissional docente está intimamente relacionado à natureza interativa dessa profissão. Ela é uma profissão eminentemente social. Esse conhecimento profissional se constrói ao longo do processo de formação e, deve permitir a esse profissional emitir juízos, decidir frente a situações, muitas vezes impares.
Esse conhecimento se faz da reunião e interação de outros saberes e, na sua consecução contribuem os conhecimentos pedagógicos, o conhecimento curricular, disciplinar e, os conhecimentos adquiridos pelos próprios profissionais no decurso de sua prática, o conhecimento experiencial (Tardif, 2003). É, pois a experiência o fio condutor e integrador do conjunto de conhecimentos que o profissional docente teve acesso em seu percurso formativo.
Considerando-se a importância para o fortalecimento da profissão docente a assunção pelos seus sujeitos da produção de seu próprio saber, o papel de autoria, abandonando a posição histórica de consumidores e transmissores de conhecimentos produzidos em outras esferas, adquire potencial para transformar a qualidade da educação e incrementar a profissionalidade de seus membros. Os coletivos de professores assumem papel fundamental quando toma para si a responsabilidade pela análise crítica e reflexiva de sua própria produção, perpassando-a pelos demais pressupostos teóricos gerados em outros campos do saber. Assumir coletivamente esse papel significa avançar frente aos processos de profissionalidade, tão cara a qualquer profissão.
Imbernón propõe a discussão sobre a profissão docente frente aos novos tempos – globalização, mundialização, sociedade do conhecimento e da informação – a partir de três idéias fundamentais, quais sejam a existência ou não de um conhecimento autônomo do professorado; a imutabilidade do conhecimento escolar frente aos diversos campos do saber nos dias atuais e, o avanço da profissão docente no campo das idéias e das palavras que não no das práticas alternativas de organização.
A existência de um corpo de conhecimento autônomo e próprio da docência é um tema polêmico não só entre os próprios professores como entre os demais sujeitos sociais. Por lidar com saberes gerados por outras áreas, principalmente no que diz respeito à função de atualização científica, utilizando-se de conhecimentos metodológicos e didáticos produzidos pela psicologia, sociologia, filosofia, a docência opera, perante a sociedade, como um trabalho no qual a técnica se sobrepõe e, quando muito, pode ser mesclada com a criatividade. Os saberes experienciais (Tardif, 2003) produzidos pelos docentes perante situações às quais os demais saberes pedagógicos gerados pelas ciências ligadas a educação não deram conta, em razão de sua circulação restrita entre poucos profissionais ou, pelo seu frequente fechamento no nível individual, não são divulgados e consequentemente, não desfrutam da publicidade.
Por outro lado, o conhecimento escolar e a cultura que caracteriza esse ambiente, erigem em torno do conhecimento ai trabalhado uma couraça dificultadora de incorporações, de reformulações ou de transformações, levando a existência de um corpo de saberes e de uma linguagem exclusiva desse ambiente, apartada das linguagens e das dinâmicas da vida social. Tal característica trava a mutabilidade do conhecimento incorporado as práticas escolares, tornando a instituição e os saberes de seus profissionais descontextualizados e, e no mais das vezes, desvalorizados.
Outra característica presente na profissão docente, principalmente na dimensão comunicativa desta para com seus próprios membros e para com a sociedade, está no conteúdo e na forma do discurso utilizado. Toma para si um corpo de idéias e de pressupostos que sob um exame mais detalhado, mostra-se ausente nas práticas efetivas. O discurso educativo se apropriou de uma linguagem centrada nas tendências teóricas e nas idéias em moda, sem, contudo incorporar tais concepções em sua práxis efetiva.
O desenvolvimento profissional do professor é um processo multifacetário para o qual concorre a formação, a retribuição, a hierarquia, o clima de trabalho, a cultura organizacional, as interações entre os pares, com alunos, comunidade e equipes diretivas, entre outros. Esse complexo conjunto de fatores interligados vão determinar ou impedir o progresso profissional do professor(a) (Imbernón, 2004).
Esse desenvolvimento profissional precisa considerar o indivíduo, mas também não pode perder de vista a dimensão coletiva da categoria. Essa dimensão, cujo desenvolvimento conjunto tem o potencial de agregar e integrar fatores e processos que ao serem implementados melhoram as condições de trabalho, desenvolvem conhecimento, atitudes e habilidades, resulta no desenvolvimento da instituição e de seu pessoal.
A formação permanente do professor deve ser considerada como possibilidade de reflexão prático-teórica, como troca de experiências entre iguais, como articulação com projetos de trabalho, como estímulo crítico ao enfrentamento dos problemas da profissão, como processo de inovação institucional.
A formação como processo de reflexão estende-se ao terreno das capacidades, das habilidades e atitudes para questionar, de modo permanente, os valores e as concepções de cada professor(a). Seu exercício mexe com a dimensão pessoal de cada sujeito, com suas particularidades, com seus anseios, com seus medos, com suas deficiências e, tê-la exposta ao coletivo requer um doloroso exercício de abertura e, consequentemente, a aquisição de um conjunto complexo de tolerância a esse tipo de investida. Não é, pois, tarefa simples e, nem todos os sujeitos envolvidos se encontram em condições de viverem o processo. A sistematicidade de experimentação desse processo pessoalmente ou, vivida por meio da observação do outro, possibilita aos poucos a aquisição de um estado psicológico para se predispor a ter sua pratica e suas concepções questionadas, em razão desse sujeito ter construído as condições subjetivas para defender posições ou ter abertura para aceitar suas inadequações.
Passa-se do conceito de formação como “[...] atualização científica, didática e psicopedagógica do professor para adotar um conceito de formação que consiste em descobrir, organizar, fundamentar, revisar e construir a teoria” (Imbernón, 204, p.49).
A formação permanente deve ter no contexto seu marco preferencial de conteúdo. Ela, necessariamente, precisa se afastar das orientações de fundo instrumental ou técnico, no qual, procedimentos formulados por especialistas e assessores são oferecidos aos professores. Também não pode focar de modo predominante as práticas de bons professores utilizando seus modos de ação, como se o mesmo pudesse ser aplicado a qualquer contexto, desconsiderando a cultura, a história, condições econômicas que os particulariza. A formação com enfoque na racionalidade instrumental e na racionalidade prática (Medeiros, 2005. Pereira, 2002), impõe ao professor o papel de reprodutor transmissor de saberes e técnicas formuladas exteriormente a seus contextos. Ela é uma formação alienante que desmotiva e, em muitas ocasiões provoca no próprio professor a assunção da responsabilidade pelo fracasso, pelo malogro do sistema educacional.
Os processos de formação continuada e de formação inicial, pelo que aponta estudos das ultimas décadas, deve voltar-se para a racionalidade crítica (Medeiros, 2005; Pereira, 2002, Imbernón, 2004; Habermas, 1987) que se utilize do contexto e do local de trabalho para, num exercício de reflexão coletiva e de pesquisa ação colaborativa, produza os saberes necessários a superação dos problemas que afetam o trabalho e a prática docente.
A formação inicial do professor, segundo Imbernón (2004, p. 65) é mais do que “[...] aprender um ofício no qual predominam estereótipos técnicos, e sim de aprender os fundamentos de uma profissão, o que significa saber que se realizam determinadas ações ou se adotam algumas atitudes, concretas, e quando e porque será necessário fazê-lo de outro modo”. Essa aprendizagem profissional nada mais é que a iniciação sociológica à profissão, a qual não pode prescindir da utilização da análise criteriosa dos problemas concretos que os professores reais vivem nos seus contextos de trabalho. A atividade real dos professores, em toda sua complexidade, deve se constituir em conteúdo de ensino principalmente na formação inicial.
A formação inicial deve oferecer as bases para a construção do conhecimento pedagógico especializado de uso restrito do professor. O seu caráter de socialização profissional inicial deve abandonar a fundamentação em modelos de perspectiva técnico-instrumental e se apoiar numa perspectiva crítico reflexiva.
A formação inicial, para além do provimento da sólida base de conhecimentos científicos e cultural, precisa também prover o futuro professor(a) para o enfrentamento da complexidade do ambiente escolar e dos sistemas educativos, o que se opera por meio da observação do dia a dia da cultura escolar, da dinâmica da categoria e de seus movimentos corporativos, assim como da sua militância política.
A formação permanente dos professores experientes deve, para além da atualização científica, pedagógica e cultural, se ocupar da “[...] teoria para organizá-la, fundamentá-la, revisá-la ou combatê-la se preciso for” (Imbernón, 2004, p.69).
A formação permanente tem como papel, oferecer ao professor a possibilidade de discutir, refletir e propor conhecimentos no âmbito da moral e da ética, e possibilitar ao profissional o desenvolvimento do conjunto de condições necessárias para que os mesmos assumam a proposição de inovações frente aos problemas que o contexto impõe ao sistema educativo e a seus agentes.
A pesquisa colaborativa, ou a pesquisa ação, ao se realizar no contexto particular do local de trabalho do professor, se reveste de importância na formação permanente do docente, uma vez que o coloca na posição de protagonista da busca de solução aos problemas que os mesmos enfrentam na execução de suas práticas. Essa pesquisa, pela sua natureza colaborativa, oferece condições para uma reflexão conjunta e negociada na qual, o exercício da argumentação e, consequentemente de uma razão comunicativa (Habermas, 1987) se impõe.
Esse modelo de formação considera o potencial formativo do coletivo profissional ao enfrentarem juntos os principais problemas que afetam a prática educativa no que concerne ao eixo ensino aprendizagem.
A pesquisa ação ou pesquisa colaborativa coloca o interior da escola como local privilegiado da formação permanente. Contudo, apesar de constituir em lócus privilegiado da formação, há que cuidar para não eliminar outras possibilidades e outros contextos (Fusari, 1997). Cursos, congresso, seminários, encontros, possibilitam ao professor discutir e atualizar sua prática, perpassá-la pela teoria, ressignificá-la. Permite sua atualização científica e cultural. No entanto, a inovação pedagógica tem na formação no interior da escola sua maior fecundidade, visto ser esse lócus o possibilitador de agregar à formação os benefícios da colegialidade, do compromisso de todos os envolvidos, potencializado quando da oferta de um clima organizacional favorecedor por parte da instituição.
A assessoria de formação se constitui em possibilidade de formação permanente, segundo Imbernón, caso consista numa parceria que considere as demandas locais dos professores e os potencialize como sujeitos e autores dos percursos formativos, estimulando-os a diagnosticarem suas carências conceituais, técnicas e metodológicas. Não é de bom tom que os assessores de formação volte o trabalho para a oferta de repertórios, de embasamento teórico e de novas metodologias aos docentes. É comum a resistência dos professores a esse tipo de ingerência externa.
O papel da assessoria de formação agregará êxito na medida do envolvimento do assessor como um parceiro dos professores, como alguém interessado nas suas dúvidas, anseios e eventuais problemas. Um ator externo que pelo diálogo, experiência, conhecimento e habilidade interativa, se envolva no contexto a ponto de mediar ações de diagnóstico, análise, planificação e implementação de processos de inovação dos professores frente a problemas específicos da prática educativa. O assessor é um animador, um energisador do coletivo, um estimulador de lideranças, um catalisador das condições institucionais para fomentar as transformações possíveis.
O debate sobre qualidade de ensino, desde que considere a relatividade desse conceito, precisa estar presente na formação do professor, seja ela inicial ou permanente.
Toda formação só tem razão de ser se estiver focada na melhoria da qualidade de ensino via melhoria e aprimoramento profissional da categoria. Nossos problemas de formação de professores – inadequação da formação inicial que não responde às necessidades dos sistemas de ensino em constantes mudanças e, da formação permanente que, está mais voltada a correção das distorções da formação inicial que, da necessária revisão das teorias, concepções e atualização científica cultural e pedagógica dos docentes – ajudam a aprofundar o fosso da inadequação da educação que ofertamos a população, especialmente a esmagadora maioria que constitui as classes populares.
A formação de professores deve se encarregar da preparação de profissionais que saibam atuar nos distintos contextos, tratando no interior da escola as questões da vida social tal qual se oferecem na realidade, preparando pessoas humanas para uma sociedade humana na qual, a ética seja a ferramenta das interações e, que o conhecimento científico, cultural, social e filosófico possa ser apropriado pelos humanos para prestar-lhe a atuação digna, respeitosa e autônoma na vida social. É nesse sentido que a qualidade deve ser almejada nos processos de formação.
Por fim, a burocratização dos sistemas de ensino e a tendência intervencionista que neles se propagam, cerceiam a autonomia dos professores quanto as decisões sobre o conteúdo e seus processos de trabalho. Essa tendência, para além de seus aspectos alienantes, reduzem drasticamente a autonomia da categoria. Sem poder de decisão sobre seu trabalho, vivem o processo de desprofissionalização marcado pela proletarização, baixa retribuição, perda de prestigio social, dificuldades em construir um estatuto profissional e, a vivência de crises identitárias.
Como possibilidade ao processo de profissionalidade aponta-se o engajamento desses profissionais em causas sociais e profissionais. Também a busca de autonomia no coletivo realizada por meio de processos de formação articulados pelo próprio grupo.
O grupo profissional deve assumir para si atribuições que lhes são próprias, como a defesa de seus interesses políticos, construção de um estatuto profissional, exercerem influencia na formulação de políticas educacionais, no empenho na reconstrução de uma nova representação social da profissão. São esses atributos que não devemos delegar a outros agentes sociais que não os próprios professores.
IMBERNÓN, Francisco. Formação Docente e Profissional: Formar-se para a mudança e a incerteza. 4ª edição. São Paulo: Cortez, 2004.
Parece que ultimamente a questão da profissão docente (profissionalização? Profissionalidade?) tem sido discutida principalmente sob o ponto de vista epistemológico. Quero dizer, a docência seria tão mais uma profissão quanto mais os professores fossem os elaboradores dos saberes mobilizados em sua prática.Questões:
ResponderExcluir- interpreto mal?
- se a interpretação precede, a docência não correria o risco de fechar-se sobre si mesma? Ou, dito de outra forma: não seria um risco desconsiderar (ou dar importância menor) aos aspectos externos que definem a profissão?
Não.
ResponderExcluirO risco existe. Contudo, a afirmação da docência como profissão depende da existência de um conjunto de saberes, de um coletivo capaz de regular e tomar decisões sobre a profissão, de propor um código deontológico mediador das questões eticas, assim como a apresentação, perante a sociedade, da especificidade da função exercida.
Esse processo tem potencial de fechar a docencia no seu percurso de socialização. É um risco a ser considerado.
Há que considerarmos a função social da educação. Sua importância impõe a profissão docente, acredito, um mecanismo regulador com razoável potencial para evitar o fechamento da profissão em si.
Boa noite Cristovam
ExcluirExcelente esse seu resumo do livro-texto de Imbernón. O encontrei por acaso. Já conheço o trabalho de Imbernón, foi fonte bibliográfica em um artigo da minha autoria, porém não tenho o livro, e precisa voltar a esta leitura, sobretudo por estar nesse exato momento vivendo uma situação de conflito, no meu papel de professora, com a Secretaria de Educação - mudou a gestão municipal, porém a que acaba de assumir parece que repetirá os "erros" da gestão anterior - privilegiar a "intervenção" no fazer da escola, nas nossas práticas para fins de controle, sem ao menos buscar conhecer aquilo que se realiza em cada escola.
Grata.